sexta-feira, 25 de junho de 2010

Caracóis

Em dia de Portugal-Brasil eu vou torcer para que ganhe o melhor dos dois países presentes neste blog e deixar-vos aqui um bom petisco enquanto todos assistimos o jogo.
E que ganhe o melhor a zero-zero!





para ouvir ao som de Nick Cave - Into My Arms

Caracóis

por Ana Martins

Hoje não vou ler uma receita e criar personagens para escrever um conto. Trago-vos, em dia de jogo de futebol que os nossos dois países param - Portugal e Brasil no campeonato do mundo - um petisco que é naturalmente pedido num café para ver futebol com cerveja geladinha – um prato de caracóis. Trago-vos também uma memória que muito acarinho.
Em Portugal dividem-se as opiniões: é um petisco muito apreciado por muitos, mas que causa repugnância a outros. É mais usual ser apreciado a centro e sul. Já a norte, só a ideia, causa tal aversão que nem se pode pedir em qualquer café, restaurante ou tasca como no resto do país. É um petisco usual, acessível e muito apreciado que se come bem quente em qualquer esplanada no final da tarde com amigos regada de cerveja fresquinha e conversa boa.
A cada Primavera esperamos ansiosamente pela temporada dos caracóis. São muito amargos fora de tempo, sendo os bons meses o que não têm a letra “R” – Maio, Junho, Julho e Agosto. Aberta a época é ver mesas de café com uma roda de amigos em torno de copos vazios e pratadas de cascas de caracóis que foram vorazmente comidos e o molho sonoramente sorvido. E porque é um petisco que só se come entre amigos? Porque não há forma elegante de se comer caracóis! Os franceses debicam escargots com uma pinça e garfo próprios e fazem-no com alguma sobriedade. Por cá, mesmo as grandes caracoletas assadas, comemos à mão, quanto muito, com o recurso a um palito. Servido ainda fumegante, come-se sem talheres, com o molho a escorrer pelos dedos e sorve-se o líquido contido dentro das cascas e sim, com algum ruído. Sejamos francos… não se faz semelhante figura diante de um estranho… com os amigos habituais dos caracóis, estaremos naturalmente mais à vontade!
Recordo como os meus melhores companheiros de caracóis, os meus irmãos e meus avós. O grupo foi-se alargando a alguns amigos mais chegados e a certa altura de nossas vidas éramos um grupo firme nas habituais dez travessas de caracóis de cada vez que nos juntávamos para a petiscada. E estas pessoas estiveram – estão – sempre presentes nos momentos mais importantes da vida uns dos outros.
Recordo com ternura o dia de enterro do meu avô Chico numa aldeia longínqua perto da Serra da Estrela. O meu avô foi daquelas pessoas lindas que viveu todas as etapas da sua vida – e bem. Homem bom, amigo, juntou à sua volta muitos mais netos que aqueles que teve. Todos os nossos amigos o tratavam carinhosamente por avô ou por Xiquinho. Já viúvo e bem idoso ainda era o nosso maior companheiro de copos, de brincadeiras, de petiscadas – de vida.
Para nós, meninos da cidade, estranhamos os procedimentos de um funeral de aldeia como se de um filme antigo a preto e branco se tratasse. Das beatas, às carpideiras, tendo como ponto alto a caturrice do padre qual cacique local, que numa discussão sonora e desrespeitosa para com o meu pai na sacristia, audível em toda a igreja, poderia vir a tornar-se uma situação constrangedora, não fosse, para gáudio geral, o meu filho ainda pequeno afirmar à saída de meu pai e do padre da sacristia: “Boa, avô, defendeste o nosso Xico!!”
Foi uma morte serena no final da vida. Talvez por isso fosse tão aceitável ficarmos finalmente sem o nosso Xiquinho. Ficou num local alto no cemitério da aldeia, uma vista bonita. Tudo foi bonito na vida deste meu avô.
Um pouco incomodados com a atenção recaída sobre os meninos da cidade após o serviço fúnebre, todos nós netos e amigos, a geração mais nova, saímos de cemitério com a estranha sensação do Xico vir connosco. Vínhamos a pé pelo caminho a recordar momentos com o nosso avô e cada um se lembrava de detalhes engraçados e pitorescos. Nesse espírito, entramos num cafezinho contíguo e sentamo-nos na esplanada. Íamos apenas beber um café, continuar a conversa boa, mas o inconfundível cheiro a orégãos despertou-nos a todos. Caracóis? Já???, em Abril…!? Foi irresistível. Os primeiros caracóis do ano! Uma euforia apoderou-se de todos nós e desta feita nada com a senhora dona Gula… sorríamos, tolos, perante a simples constatação – o avô Chico!!! Estava mesmo connosco, ali ao lado, mas a sua inequívoca presença na convocatória para os primeiros caracóis do ano.

Receita de caracóis à Algarvia:

1 kg. caracóis de calibre graúdo
1 kg. caracoletas de calibre médio
sal (comedido, os caracóis já são salgados)
malagueta (a gosto)
cubos de bacon e chouriço
1 cebola
1 cabeça de alho esmagado
1 tronquinho de oregãos

Os dois truques básicos dos caracóis consistem em a) serem lavados muitas vezes sempre em água corrente e b) para que os caracóis fiquem com a cabeça fora da casca, a panela é colocada só com água ao lume, sempre em lume o mais baixo possível e apenas quando estiver a ferver se colocam os temperos. Depois de temperado a gosto, deixe cozinhar, ficando no tacho para apurarem pelo menos 2 horas. Pode pôr na mesa pão e manteiga para acompanhar ou para molhar no caldo delicioso dos caracóis. Serve-se bem quente e acompanha de cerveja bem gelada.
Nota: Se são caracóis de viveiro podem ser logo consumidos, mas se tiverem sido apanhados no campo, é aconselhável “pastá-los” durante uns dias. Colocados numa caixa com tampa perfurada, alimente-os com folhas de alface ou fruta de forma a limparem de possíveis ervas nocivas para que, quando cozinhados, não saibam mal.



9 comentários:

Ana Paula Motta disse...

Que memória comovente. Aqui praticamente não comemos caracóis.Na verdade me fez lembrar a maneira que comemos caranguejos e siris, com as mãos e entre amigos. Nem se cogita a ideia de comer sozinho.

Ana Martins disse...

... ou como brincam os americanos, comer assim ruidosamente num "date" eheh

Obrigada Ana, e como disse, se o Brasil ganhar e for melhor que Portugal, que seja zero-a-zero rsrsr

walnize carvalho disse...

Ana,
Endosso as palvras de Ana Paula!Delícia de memória e de excêntrica (para nós) receita.
Bjs,Walnize

walnize carvalho disse...

Ana,
Endosso as palvras de Ana Paula!Delícia de memória e de excêntrica (para nós) receita.
Bjs,Walnize

Sylvio de Alencar. disse...

Nunca saborerei, talvez um dia...!

Passando para lhes desejar boa noite, bom sábado, e bom fim de semana.

Abrações!

Mina disse...

Ups
e que bom aspecto que tem!...
Os meus eram mais "patinho", mas também estavam deliciosos, e também os cozinho e trato dessa forma kkk
Há expeção do chouriço e do bacon, embora já tenha comido muitas vezes com, eu preparo sem...
Temos de ir ao Júlio eram os melhores caracóis!...
Engraçado, que à comidas que nos trazem á memória pessoas e ainda hoje com os caracóis recordamos os nossos progenitores, pai e sogro ambos apreciadores do pitéu...
bjocas

Ana Martins disse...

Tão engraçado este ser um blog com duas culturas e formas de estar diferentes - em Brasil e Portugal - e contudo termos bases semelhantes. Mas Ana Paula, Wal e Sylvio, pergunto, que memórias vos trás uma mesa de amigos ou família a petiscar siri? Penso que sendo um procedimento similar, o comer à mão e procurar aquele bocadinho de carne no cantinho, também de lamber os dedos, vos traga o mesmo tipo de recordações que despertou à Mina ou a mim deste lado do Atlântico.
Ana e Wal, estou a gostar muito desta nossa colaboração!

um abraço,
Ana Martins

Ana Paula Motta disse...

Caranguejo e siri, Ana, tb não há hipótese de comer sozinho,assim como churrasco.

JOSÉ BARBOSA disse...

Alguém me pode tirar uma dúvida?

Aqueles caracóis brancos que vemos nas bermas de Leiria, são caracóis ou caracoletas?

Obrigado
JB

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