sexta-feira, 23 de abril de 2010

Sabor e Histórias: uma postagem especial



Hoje o Sabor e Histórias não traz uma receita ou dicas culinárias.
Convidamos o escritor Luís Bento para uma entrevista, o que muito nos honrou.
Luís Bento, português, 45 anos, licenciado em Letras, gere o Blog Bento Vai Pra Dentro. Publicou no Brasil o Livro Lusitânia Online e prepara outros projetos literários.
Bento nos falou da infância, de onde nasceu o gosto pela literatura, do mercado editorial português e de...culinária.

1-Como era o menino Luís Bento, como era sua relação com a leitura? O que gostava de ler na infância?

O menino Luís Bento era um miúdo normal com as brincadeiras e os sonhos dos miúdos da mesma idade. Talvez porque o pai tivesse emigrado e a educação tivesse ficado exclusivamente a cargo da mãe, não saía muito de casa. Assim sendo e juntando o facto de sr filho único, o tempo era devorado em leitura constante. Desde muito cedo que me habituara a receber livros. Li os tradicionais: Moby Dick, As viagens de Gulliver e, mais tarde, a colecção dos Sete e dos cinco da Enid Blyton. Depois foi em progressão constante pela auto-estrada da leitura.


2- Quando surgiu a vocação para a escrita, ainda na infância ou mais tarde?

Surgiu ainda na infância na sequência dessa educação ministrada, em exclusividade, pela mãe. Para saber ler e ler bem, teria que saber escrever melhor. Daí que, ao invés do amigo imaginário, imaginava histórias, rabiscava palavras onde quer que fosse. A dificuldade na aritmética e, mais tarde, na matemática, deram um empurrão final e definitivo para a escrita.

3- Sabemos que o gosto pela leitura deve ser estimulado pelos pais, mas muitas vezes isso não ocorre. E a escola,tem cumprido bem esse papel de estimular o gosto pela leitura?

Acima de tudo, o gosto pela leitura TEM que ser estimulado em casa. A escola também tem essa função mas não pode substituir-se aos pais. Aliás, o que se assiste hoje é a uma total demissão dos pais a todos os níveis. Os pais passam o dia fora de casa limitando-se a depositar os filhos no armazém/escola, substituiram os livros pela televisão no quarto mais a Nintendo e a playstation. Não acompanham a evolução do conhecimento ou a socialização limitando-se apenas a exigir boas notas e passagens de ano. O resultado está à vista: uma população jovem que, ainda que com “canudo”, muitas vezes, apresenta níveis preocupantes de interpretação e leitura. Na minha actividade profissional recordo, por exemplo, um jovem que se gabava de ter feito um curso universitário sem ter lido um romance literário. Era confrangedor assistir à sua dificuldade em interpretar um documento ou a nota explicativa de um produto bancário diante do olhar atónito dos clientes... A escola, efectivamente, tem cumprido o que se lhe pede: elaborar os programas, seleccionar os autores, etc. mas não pode imprimir uma leitura coerciva…

4-Acha que editar em Portugal é difícil por haver uma espécie de "lobbie" entre os editores?

Editar em Portugal? Lobbie?? Editoras? O tema dá pano para mangas. Tenho uma opinião muito crítica sobre o assunto, devidamente fundamentada no estado geral da nossa sociedade. Foi nos anos oitenta, no liceu Pedro Nunes, pela mão de um excelente professor de Português que decidi seguir Letras, ainda que contra a vontade do meu pai, beirão dos quatro costados, qu achava que a cultura “não enche barriga”. À sua maneira, tinha a sua razão quando me recordava o facto de Camões ter morrido na miséria embora eu ripostasse que não seria necessário ter as qualidades estéticas do poeta para, a qualquer momento, se morrer na miséria. Mas, dizia eu, esse excelente professor de Português tinha concorrido dois anos antes ao cargo de professor na Faculdade de Letras. O homem tinha curriculum, conhecimento, empatia, mas não tinha nome sonante ou importância política. Estranhamente, no seu lugar, fora admitido um intelectual da resistência que se limitava a fazer ditado nas aulas teóricas semanas a fio. Não sou iconoclasta. Não pretendo ser deselegante, mas a realidade é que a nível cultural e académico tudo funciona pelo lobbie, pelo nome, pelo compadrio político. O meio é pequeno e se algum novo autor tiver a veleidade de querer penetrar no mercado, há como que um código de silêncio, de clã, desde os autores aos críticos e jornalistas. O simples facto de editar uma obra de autor e pretender vê-la publicitada nos meios de comunicação é de uma dificuldade extrema. Os que vegetam na mediocridade do elogio mútuo e recíproco não admitem a entrada de “gente estranha” na área.

5- Os leitores também determinam o que é editado?

Editar em Portugal? Lobbie?? Editoras? O tema dá pano para mangas. Tenho uma opinião muito crítica sobre o assunto, devidamente fundamentada no estado geral da nossa sociedade. Foi nos anos oitenta, no liceu Pedro Nunes, pela mão de um excelente professor de Português que decidi seguir Letras, ainda que contra a vontade do meu pai, beirão dos quatro costados, qu achava que a cultura “não enche barriga”. À sua maneira, tinha a sua razão quando me recordava o facto de Camões ter morrido na miséria embora eu ripostasse que não seria necessário ter as qualidades estéticas do poeta para, a qualquer momento, se morrer na miséria. Mas, dizia eu, esse excelente professor de Português tinha concorrido dois anos antes ao cargo de professor na Faculdade de Letras. O homem tinha curriculum, conhecimento, empatia, mas não tinha nome sonante ou importância política. Estranhamente, no seu lugar, fora admitido um intelectual da resistência que se limitava a fazer ditado nas aulas teóricas semanas a fio. Não sou iconoclasta. Não pretendo ser deselegante, mas a realidade é que a nível cultural e académico tudo funciona pelo lobbie, pelo nome, pelo compadrio político. O meio é pequeno e se algum novo autor tiver a veleidade de querer penetrar no mercado, há como que um código de silêncio, de clã, desde os autores aos críticos e jornalistas. O simples facto de editar uma obra de autor e pretender vê-la publicitada nos meios de comunicação é de uma dificuldade extrema. Os que vegetam na mediocridade do elogio mútuo e recíproco não admitem a entrada de “gente estranha” na área.

6- Será que as editoras se tornaram em empresas de fazer dinheiro em vez de transmitir cultura?

Há muito que é assim! Com a chegada dos yuppies à gestão das empresas nos anos oitenta, o universo editorial passou a ter como objectivo o lucro fácil, rápido e garantido. A vertente de transmissão de cultura, de exemplo, de tendência, desapareceu. Atente-se no exemplo da Leya que consegue comercializar obras de cariz mais popular, por norma associados à Oficina do Livro, e obras de grandes temas e causas como as da Editorial Caminho. Causa-me alguma estranheza ver os livros da Caminho seguirem os mesmos ditames de comercialização da Oficina… no meio de T-shirts, sacos plástico, balões e abanadores…

7- Só vingam os escritores que escrevem literatura dita "light" ou com um mentor conhecido?

Decididamente, só vinga quem tem um mentor, quem tem nome na rádio ou na televisão, quem tem família com larga tradição no mundo artístico. Uma vez frequentei um curso de escrita criativa em que o escritor foi peremptório: “As editoras não lêm os manuscritos. Ou vocês têm um escritor amigo que vos encaminhe a obra ou nada feito”. Acredito piamente nisto. Até porque conheço gente ligada ao mundo editorial com tese de doutoramento na área que defende o mesmo. A diferença é que em Inglaterra diz-me assim: “ arranje um agente literário, ele lê a obra, se ele gostar nós publicamos e você paga-lhe direitos de intermediação” Em Portugal não lêm, apostam no nome sonante ou no mentor passando, muitas vezes, ao largo de obras de vulto. Até em termos comerciais as nossas editoras têm falhado redondamente. Recordo que o Código da Vinci foi oferecido para tradução a uma editora portuguesa que o recusou, por sorte, uma senhora de nome Zita Seabra, na altura responsável editorial de uma editora importante, leu a obra e apercebeu-se do que tinha entre mãos. Não se enganou…em termos comerciais o livro foi um sucesso. Quanto à literatura light…não me choca. Todas as correntes literárias deverão coexistir sem atropelos. O problema em Portugal é que a literatura light se tornou norma. O que me choca é ver um imberbe desconhecido, fazer umas pantominas na televisão, dizer uns palvrões, ser fotografado com umas “chicas” na noite e, de repente, o indivíduo pavoneia-se e desdobra-se em entrevistas para explicar o seu “sucesso literário”.

8-Sabendo um pouco das suas origens e da sua formação académica em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade de Lisboa, e partindo do pressuposto que raros são os que querem fazer carreira pela escrita até pelas dificuldades que os escritores encontram, gostaríamos de questioná-lo sobre a razão que o leva à procura e à consequente descoberta do mundo literário Português.

Seria fácil fazer carreira… Com a facilidade que tenho em brincar com as palavras, bastava-me escrever uma história de vampiros, misturar um pouco de sangue, crime e mistério, regar tudo muito bem com sexo “à fartazana”, tornar-me amigo das vedetas “fast food” da televisão e vendia uns bons milhares, maas não é isso que está em causa. O que está em causa é fazer passar uma mensagem, questionar este nosso mundo ainda que pela via do humor e da mordacidade. Escrever é a minha forma de fazer a revolução, de agitar as consciências. Para além disso creio que há espaço ainda para uma outra tendência. Algures entre a literatura light sem preocupação social e a obra literária, mais pesada, rígida nos seus cânones estabelecidos por uma academia cristalizada, há espaço para uma escrita de leitura e interpretação acessível, solta, ágil e com o mínimo de qualidade literária.

9-Pela leitura atenta dos seus textos, reconhecemos doses de mordacidade, sarcasmo e ironia. Não é um risco neste país onde há pessoas tão comezinhas, mentalmente castradoras e sem hábitos de leitura que se insurjam ou simplesmente rejeitem a sua escrita?

É um risco e, pior, é uma certeza. O português lida bem com a ironia sobre o outro, sobre o estrangeiro, sobre o diferente. Fazer humor com os nosso próprios traços é o melhor humor, mas ao mesmo tempo, o mais perigoso. Não é d estranhar que quando abri o blog, 90% dos leitores eram brasileiros…inclusivé havia leitores da Argentina e do México. Tive que instalar um tradutor à conta disso. Até aí se nota o lobbyng…um blog recém chegado não vingaria nunca num meio onde já andavam outros com créditos firmados. O sucesso do meu blog começou no leitor brasileiro, daí que tivesse optado pela edição do Lusitânia Online no Brasil, mais propriamente, em Rio Grande do Sul através da editora Novitas. Só depois disso se inverteu a tendência. Para além do risco da mordacida há outros factores de dificuldade a ter em conta. O volume do livro. A ideia errada de que o “calhamaço” é um bom livro. Cheguei a receber mensagens de leitores questionando o volume do livro e o facto de, feitas as contas, custar “nove cêntimos por página”… Além disso, uma grossa fatia das pessoas não quer perder tempo a ler nas entrelinhas. Quer a história simples, concisa, princípio, meio e fim sem grandes dilemas interiores. Assim se explica a formação das “elites”. Estas aparecem quando a generalidade das pessoas se demite da sua função interpretativa ou interventiva.


10-António Lobo Antunes, um dos seus autores de referência afirma “Não acredito na inspiração. O talento não existe. Há pessoas que trabalham.” Concorda? Porquê?

Concordo em parte. Embora Lobo Antunes seja a minha referência maior na literatura e, pese embora o facto de achar que 90% do ofício de escrita reside no trabalho contínuo e persistente em moldar a palavra, considero também que o resto é inspiração. Inspiração entendida como uma predisposição natural para a escrita. Da mesma forma que se não tivermos uma predisposição para os números, por mais trabalho e persistência que haja, jamais seremos excelentes matemáticos…

11-Manuel da Fonseca dizia: “Ser espontâneo dá muito trabalho”. O Luis Bento adoptou algum método de escrita? Criou um? Como se manifesta o seu processo criativo?

O único método que melhores resultados traz: Escrever como falo. Sou muito observador por natureza, por vezes fixo-me em pequenos pormenores, em episódios acessórios e imagino situações e brinco com elas. Sou bem humorado por natureza, às vezes deixo a criança que vive cá dentro tomar conta do corpo todo. É assim que funciono. É assim que escrevo. Com simplcidade, com humor, com recurso ao trocadilho e ao duplo sentido, porque sou assim no dia-a-dia. Dá muito trabalho ser expontâneo sim…às vezes nem eu próprio me aturo…

12-Fale-nos um pouco sobre a sua obra "Verde Código Verde”. Como surgiu a ideia inicial para a criação deste seu novo romance?

“Verde, código verde surgiu de uma conversa com um colega e amigo da mesma idade. Ambos nascidos em 1964, acabámos a conversar à mesa de um café sobre o Eça de Queiroz e a amargura do mesmo em relação ao seu tempo. Quarentões de gema, facilmente chegámos à conclusão de que nos sentimos inadaptados à voragem consumista desta sociedade, desta…”next generation”. Uma geração que se divorcia apenas alterando o estado civil no facebook, uma geração que se despede do patrão por SMS, relações descartáveis e descartadas em minutos, uma geração que se desvia da idosa que tropeçou nas escadas e não pára para não perder o comboio…é uma geração perdida no presente e de futuro incerto. E isto, ou muda, ou muda! E então recordámos os nossos tempos de escola, o verão quente de 75, os episódios caricatos, as nossas diversões na época. Ficaram alguns amargos e boca, a conclusão de que este não é o nosso tempo. Revimo-nos n’Os Maias…cotinuando a correr a ver se apahávamos o eléctrico. Daí surgiu a ideia do romance. Constituido em dois planos: Verão quente de 75 e actualidade. Assistimos aos sonhos, ao burlesco de algumas situações de um grupo de miúdos de bairro a quem foram proporcionadas condições de estudo e outras de modo a triunfar na vida. Trinta anos mais tarde reunem-se num jantar e aí ..bom..aí…era bom que alguma editora se interessasse de modo a podermos saber o fim da história…

13- Agora uma pergunta sobre o tema central do nosso blog.O Luís Bento costuma ler livros de culinária ou visitar blogs como o Sabor e Histórias? Qual o seu prato predileto?

Costumo ler sim. Aliás, começou com a leitura do Pantagruel na faculdade de letras na disciplina de literatura francesa… Leio, gosto de ler e…cozinho..Gosto de cozinhar. Tudo menos bolos…Bolos não me ajeito. Do arroz, às massas, dos refogados aos pratos no forno, normalmente, sai-me tudo bem. Ah…e sopas e saladas também. Tenho mesmo prazer em fazer comida, descascar, cortar, lavar os alimentos. È um processo criativo. Transformamos algo em bruto numa coisa elaborada. Da mesma forma que a escrita mexe com os nossos sentidos, cozinhar mexe com a criação, com a visão, com o olfacto, o paladar. Sim, costumo visitar o Sabor e Histórias. Primeiro porque acompanho a actividade de escrita da Ana Paula Motta desde o início dos blogs, depois porque nos traz uns pratos tradicionais, quer de cozinha portuguesa quer de cozinha brasileira, deliciosos. Muitos deles desconhecidos. Também foi no Sabor e histórias que fiquei a conhecer a história do bolo rei…
Favas! Sem dúvida…o prato preferido!
Resta-me agradecer a excelente oportunidade que me proporcionaram e lamentar pelo profundo atraso na resposta.

Então que assim seja,uma receita de favas.
Favas Guisadas


Ingredientes:
Para 4 a 6 pessoas

3 kg de favas
150 g de toucinho
200 g de chouriço de carne
1 molhinho de coentros
2 folhas de alho
200 g de pão
sal
Confecção:

Escolhem-se as favas bem tenras e lavam-se depois de descascadas.
Corta-se o toucinho às tirinhas e o chouriço às rodelas e fritam-se num tacho em lume brando. Retiram-se quando tiverem largado bastante gordura.
A esta gordura junta-se o molhinho de coentros ao qual se ataram as duas folhas de alho. Deixa-se fritar um pouco e juntam-se-lhe então as favas. Tapam-se e deixam-se cozer, agitando o tacho e juntando pinguinhos de água à medida que vai sendo necessário para impedir que as favas agarrem ao fundo do tacho e se queimem.
A meio da cozedura das favas, introduz-se novamente o toucinho e o chouriço e deixa-se apurar bem.
Coloca-se numa travessa ou num prato fundo (prato de meia cozinha) o pão cortado às fatias sobre as quais se deitam as favas.
Acompanha-se com salada de alface cegada, isto é, cortada em caldo-verde e temperada com coentros e hortelã picados, azeite, vinagre, sal e um pouco de água.

Fonte: Gastronomias.com (Roteiro Gartonómico de Portugal)

3 comentários:

douglas da mata disse...

Saborosa entrevista, e não poderia ser diferente:

O "recheio intelectual" é papa-fina, e a "cobertura" da entrevistadora, idem.

Parabéns ao Bento pela lucidez de sempre, e pela Aninha, na escolha do "assunto".

Abraços.

Ana Paula Motta disse...

Obrigada,Douglas pela visita,pelas palavras. A entrevistadora teve a companhia da Maria Lessa e da Natália Augusto na empreitada e o entrevistado nesse caso fez toda a diferença.

Unknown disse...

Ana Paula ...só vos posso estar muito grato ... Fizeram um excelente trabalho (a An Paula, a Maria Lessa e a Natália Augusto)... Por motivos já explicados atrasei-me bastante nas respostas e por um inoportuno problema informático só agora pude comentar. Uma entrevista conduzida com ritmo, sobriedade e que constituiu um excelente incentivo para ir buscar as palavras que me andam a fugir...
Mantenho o que disse: Vencer lobbies, seja em que área fôr, é difícil, mas a persistência há-de dar resultados...até lá ...se não me deliciar com a escrita, delicio-me com o carinho dos vossos mimos...

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