domingo, 26 de dezembro de 2010

Já não gosto do Natal

a meus irmãos, Paula e Ricardo
por Ana Martins

Eu? Já não gosto do Natal. Perdeu todo o sentido, sabor, até o cheiro. Este formato do fazer compras porque sim, nas vertentes ter-de-dar-às-professoras-dos-filhos, fica-mal-não-oferecer, ou a pior, ter-prendas-para-retribuir-a-quem-não-vou-dar-e-que-sem-esperar-me-dão, confesso que me dão ataque de taquicardia.

para ler ao som de:



Azeite Gallo - anúncio televisivo de 1995

Esta mentalidade consumista do ter de dar incomoda-me. Eu? Gosto de dar, de preferência sem datas adjacentes e aquilo que faça o meu amigo sorrir. E sim, basta um gesto. Um bilhete escrevinhado às vezes toca mais que o objecto de consumo desejado! É o acto de dar que está subvertido neste Natal dos dias de hoje que recuso fazer parte. É um frete!, e não sei se a desculpa da minha provecta idade serve, mas cada vez tenho menos paciência para os fazer...
Recordo com ternura a minha melhor memória de cheiro de Natal. No afã da véspera, a avó Rosa na cozinha a socar num alguidar a fazer os mágicos sonhos molhados, ensopados na calda doce, o cheiro profundo da laranja a impregnar a atmosfera de um calor patente nas bochechas rosadas da cansada avó na massa assim bem amassada, e o cheiro do leite açucarado sarapintado com canela e limão do inigualável e inesquecível arroz doce de minha mãe, que como marca indelével nos ficou no ar, na memória, nas narinas na mescla dourada dos fritos. Não recordo outros natais que nos fez perder a nossa mãe e depois a nossa avó. Devia ser proibido por decreto-lei morrer-se no Natal e matar o Natal em cada um de nós. Hoje, já não sendo crianças, já sem as avós e a mãe, com novas recordações e em cozinhas diferentes, o meu irmão, a minha irmã e eu temos as nossas próprias famílias, outros compromissos e apesar de ambas excelentes cozinheiras que assumidamente somos, encomendamos a lista de doces na melhor pastelaria e mandamos o marido para a fila interminável. Devo confessar que hoje, enquanto dona de casa, considero a praticabilidade da coisa muito conveniente. O nosso irmão continua a ser muito prático na forma de gerir as divisões de tempo, espaço, as emoções e os natais. Admiro-o também por isso!
Uma reflexão que pairou no ar neste mês de Dezembro deixou-me pensativa. Se a crise que assola o país faria a contenção necessária a parar a fúria desregrada do consumismo e por via da crise, os valores verdadeiros voltariam. Se os meios justificam o que quer que seja para chegar aos fins pretendidos? Não gosto dessa filosofia. Não gosto nem acredito que a contenção espartana faça parte no nosso normal funcionamento, nem por termos bolsos vazios faça valores alguns voltarem. Acredito que o caminho tenha de ser outro, diferente.
Se há coisa que me incomoda é ver pessoas a dormir em caixotes de papelão num qualquer canto das nossas cidades e ver outras pessoas passarem sem sequer os notarem. Mas são capazes de grandes gestos, de grandes depósitos num qualquer NIB da moda para ajudar uns quaisquer desgraçadinhos. Eu? Volta-me à ideia o darmo-nos num pequeno gesto. Porque faz sempre a diferença na alma de quem é acarinhado.
Como se chega a esse ponto de abandono permanece um mistério para mim. Em conversa com minha amiga Paula Cascais, debatíamos esse ponto há dias. Foram as más escolhas na vida que os conduziram a viverem na rua? Ao ajudá-los, ou a associações que lhes proporcionam refeições quentes e roupa lavada, estaremos a ajudar realmente ou a perpetuar esse movimento? Qual a melhor abordagem para efectivamente fazer a diferença na vida de cada uma dessas pessoas? Agrada-me o fazer o bem sem olhar a quem e sobretudo, não haver focos de luz sobre cada acto que se faz de voluntariado, de bondade, de ajuda ao próximo. Não acredito em grandes gestos porque é Natal, mas em oferecer uma sopa ou mais roupa quentinha a pessoas sem-abrigo nesta época, isso faz sentido, não pelo Natal, mas porque está frio, porra!
A forma de se viver o Natal hoje representa como se vive a vida. A correr desenfreadamente na semana a cumprir horários e esperar pelo fim-de-semana para depois logo começar outra semana. Amiúde acerca-nos a ideia que o Natal está já aí e que o ano passou a correr. Porque passou mesmo. Penso que a certas pessoas, nessa correria desenfreada lhes falta todo o sentido, sabor, até o cheiro que a vida deveria ter. O ter tempo para os filhos. Ler-lhes antes de adormecerem em vez de ficarem a ver novelas e os putos no quarto nas respectivas consolas. Explicar os porquês em vez de um agora não. Posso soar moralista, a roçar o fundamentalista neste tema, mas acredito piamente que a educação que damos a nossos filhos faz a mudança, aquela que aos 20 anos todos acreditamos conseguir um dia vir a mudar o mundo.
Enquanto escrevo no meu portátil, um anúncio na TV chama a minha atenção, distrai-me o suficiente para levantar os olhos e murmurar um “adoro isto” - o do azeite, versão alargada missa do Galo. O meu filho, sempre atento, busca o comando e num simples clique faz o meu Natal! Grava o anúncio e enquanto o repete vezes seguidas só para meu deleite, cantamos os dois ó rama ó que linda rama a olhar-me bem dentro dos meus olhos, lá no fundo, onde ainda há Natal.



Receita:

  • Um pires de azeite
  • fatia de pão (vá, com o travo ácido e o miolo bem compacto do nosso pão alentejano)
Sirva como entrada. Um gesto simples. Molhar o pão no azeite e deleite-se.



A todos que tenham tido um Bom Natal, 
que o próximo ano possa ser melhor.




4 comentários:

Ana Paula Motta disse...

Lindo!!! Isso sim é Natal. Meu encanto de menina, pois nasci faltando poucos dias do Natal, eu conservei por muito tempo. Há cinco anos perdi minha avó numa manhã de 25 de dezembro, logo ela, entusiasta do Natal que desde sempre disse que "para o ano não vou estar mais aqui" desde que me entendo por gente. Sem ela o Natal ficou menos Natal e além disso meu filho cresceu, e sem criança a data perde muito da magia e da inocência. Esse ano tive cá na minha ceia três menininhas e ver os olhinhos encantados trouxe um pouco do espírito de volta.

Margarida R disse...

Magníficas palavras, Ana! Partilho da mesma opinião, da mesma filosofia, embora ainda acredite, talvez com alguma ingenuidade, que assistiremos a uma inversão desta tendência consumista e que recuperaremos os valores de outrora. É um facto, que os tempos são outros, que as pessoas se habituaram a confinar o seu olhar em função de uma vida diária pouco enriquecedora, sem ver o que se passa ao seu redor. Nesta altura do ano, parece que despertam para o Mundo, e esses pequenos gestos de dádiva na tentativa de acalmarem as suas consciências, revolve-me as entranhas. Cabe a cada um de nós, alterar essa atitude, e começar dentro de casa, através dos valores e dos ideais que transmitimos aos nossos filhos. Sobretudo na forma como actuamos, para que possam seguir o exemplo que observam de perto (confesso que há momentos em que sou contagiada pela mesma "enfermidade" e, no final de um dia de trabalho não me sinto muito vocacionada para agir em conformidade com tudo o que defendo, mas tenho tentado contrariar-me. Afinal, como posso querer um mundo mais justo, equilibrado e pacífico, senão contribuir com a minha ínfima parcela!?). Façamos de cada dia ao longo do ano, uma constante celebração de Natal (ou será antes, fazer do Natal uma consagração dos gestos e atitudes do resto do ano!?). Festas Felizes, e que o Novo Ano que se aproxima, nos permita difundir estes valores por todos os que nos rodeiam...

Anónimo disse...

Percebo o ponto de vista, mas acho que podes relaxar um bocadinho. Achoq ue em muitos lares o Natal continua a ser apenas mais uma forma de estarmos todos juntos. Uma lembrança, uma oportunidade de estarmos lá um para os outros. Na minha família o Natal é excatamente como era quando a matriarca ( a avó) ainda existia. Bacalhau, couve, azeite. O polvo em miuda não sei se existia ou não. Agora sei que não existe porque comemos pouco e por isso não se justifica. O Natal aqui vive-se do dia passado na cozinha, das risadas entre as irmãs e agora os sobrinhos, nos embrulhos, na mesa com cores de Natal (imposição minha). Vive de poucos presentes, escolhidos com cuidado. Vive da reunião familiar, onde cada um recebe uma lembrancinha, uma brincadeira. Natal para mim sempre foi e continua a ser gente chegada e muita muita risada. É um Natal humilde com imenso valor ;)
beijinho

Magui

Zé João Ventura disse...

Este ano decidimos contenção de despesas e de consumismo. Prendas só para os meninos. Para os adultos, lembranças. A minha mulher sugeriu oferecer azeite. Foi o que fizemos. Comprei garrafas e rolhas e entreguei-as a um amigo, que produz azeite, para encher. Fis um rótulo no computador, e ofereci-as aos meus amigos. Azeite puro, virgem. Uma maravilha para molhar no pão.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...